O medo é um sentimento latente em todos nós. Não há alguém que, em algum momento da vida, não o sinta, em diferentes níveis de intensidade.
Zóio, um dos gatos com o qual divido subalternamente a casa, ao ouvir um barulho súbito no pátio, levanta as orelhas, arregala os olhos (mais do que já são) e, no segundo ruído mais forte, escapa do meu colo e desaparece para onde o nariz aponta. O medo dos animais é puro instinto. E protetor.
Uma pessoa andando às quatro horas da manhã numa rua escura de uma grande cidade pode sentir medo, e evitará a situação se puder evitá-la. Alguém que quiser atravessar uma rodovia movimentada, e não tiver talento para suicida, vai em busca de uma passarela.
Se sabemos que há um vírus altamente contagioso matando milhares de pessoas e que se transmite facilmente por via respiratória, todos usaremos máscaras e evitaremos aglomerações, porque assim nos ensinou a ciência sobre a transmissão desse vírus.
O medo em humanos também é instintivo e protetor, quando se percebe um perigo.
Não me especializei em psiquiatria, a especialidade médica mais difícil de todas. Prefiro as crianças, com seus sorrisos puros, seus narizes entupidos e suas verdades nuas. Mas tenho refletido, como uma espécie de charlatão bem intencionado, sobre alguns comportamentos humanos atuais, sobre como nossos medos podem ficar escondidos em algum lugar do inconsciente a ponto de perderem a conexão com nosso instinto de defesa.
O medo nos protege, desde que não vire pânico. Quanto menos sabemos sobre algo perigoso, maior é o perigo que não percebemos. Informação e conhecimento são nossas principais armas de defesa.
Neste exato momento, quase trezentas pessoas aguardam leito em uma UTI no estado gaúcho.
Tenhamos medo, portanto, de ficarmos gravemente doentes, por qualquer que seja a doença, porque se temermos buscaremos formas de proteção. De medo, não morreremos.
E, se ouvires do presidente da república a expressão bíblica “não temas!”, informe-se de tudo o que presidente disse no mesmo discurso, e em toda a sua trajetória regada à ignorância, estupidez e desprezo pelos valores humanos mais sagrados, na contramão de qualquer ideia conhecida de Deus.
Não creio que a Bíblia possa ser citada sem escárnio por alguém que ignore tanta dor no pior momento da história da saúde pública brasileira.
E, enquanto aguardo que o Zóio reapareça , reflito que uma grande parte da população religiosa, que reza em nome de Deus todos os dias, foi fundamental na sua eleição.
Não sou psiquiatra, ainda bem, para explicar toda essa bizarrice. No máximo, um esforçado paciente quando tudo isso acabar. Ou antes.
Nardély Ilha - Médico pediatra. Mar/2021.
Bizarrice trágica... Já li por aí que ele reflete o pensamento do brasileiro médio. Mas a nossa "índole brasileira" passa pela humanidade, pela solidariedade e respeito ao sentimento alheio. Não, não creio que seja o pensamento do brasileiro médio. Acredito que isto deva-se a outra característica do nosso povo: o irresistível impulso de idolatrar "gurus" e "mitos". Coronéis espalhados por este Brasil sabem muito bem trabalhar com este traço de personalidade do DNA brasileiro.