No mencionado Pêndulo de Foucault (1988), Eco nos apresenta um “documento”. Belbo e Casaubon mergulham em um delírio que envolve civilizações perdidas, planos mirabolantes, obscurantismo, na tentativa de decifrá-lo. Seu aspecto, o papel, palavras borradas, a disposição das frases em versículos e o idioma arcaico lhe dão autenticidade e não duvidam de sua origem medieval. O que era para ser um plano para encontrar autores de livros autofinanciados para a editora onde trabalham, acaba por envolve-los em conspirações. Mas enquanto Belbo mergulha no delírio, Casaubon consegue manter-se mais próximo à realidade graças, em parte, a sua mulher, Lia. Nela repousa sensatez e maturidade.
No post anterior citei-a como fulana e que, entre as lições que dá ao seu marido, o beltrano, estão alegorias do corpo com a nossa percepção das dualidades do Universo, o Bem e o Mal e a origem dos mistérios que envolvem os números:
“(...) E agora passemos aos números mágicos que tanto atraem os seus autores. Você sabe que um não é dois, um é o seu trabalhinho ali, uma é a minha tarefazinha lá e um são o nariz e o coração e logo está vendo quanta coisa importante é um. (...) Três é o mais mágico de todos porque o nosso corpo não o conhece, não temos nada que seja em três, e devia ser um número misteriosíssimo que atribuíamos a Deus, onde quer que vivêssemos.
Mas pensando bem, eu tenho só uma coisinha e você tem um só coisinho (...) e se pusermos essas duas coisinhas juntas acaba dando uma nova coisinha e acabamos em três. (...) Cinco não falemos disso, são os dedos da mão, e com as duas mãos tens aquele número sagrado que é o dez, e por força são dez até mesmo os mandamentos. (...)
Agora toma o corpo e conta todas as coisas que despontam do tronco, braços e pernas, cabeça e pênis são seis, mas para a mulher são sete, por isso me parece que entre os seus autores o número seis nunca foi tomado a sério senão como o dobro de três, porque funciona só para os machos, os quais não têm nada sete, e como eles é que mandam preferem vê-lo como número sagrado, esquecendo-se que também as minhas tetas despontam para fora, mas paciência (...) E sempre girando em torno consegue-se arrancar todos os números que quisermos, penso nos buracos. (...)” (Tradução de Ivo Barroso).
E, no final, é Lia quem decifra o “misterioso documento”. Mas isso não vou contar...
Paulo Frandoloso - Médico Pediatra; Jul/2020.
Comments